As minhas lembranças observam-me

AS MINHAS MEMÓRIAS OBSERVAM-ME.[1]

 

O caminho mais óbvio para ficar cego, acredita, não é perder a visão, mas a memória.

Eduardo Galeano

 

Considero (de ‘com+sidus’ em latim) alguns castros (de ‘castru’ em latim, a significar ‘fortaleza’); as minhas memórias observam-me. Imperioso escrever. Faz-se preciso regurgitar de uma só vez os passados.

Por que resolvo isso neste momento? Ora, cara narradora, porque as verdades e as inverdades, por vezes, são plurais. Quanto mais não seja, há também o tempo de maturação, de confirmação, de vir à superfície. Vá em frente, conte o teu conto, ou tua novela, pois talvez conto não seja, haja vista, os anos decorridos, a teia tecida. “O caos é uma ordem por decifrar”, disse Maria da Paz.

Cenas das mais diversas situações e períodos perpassam diante de mim. Por onde iniciar? Oh, iniciado está; já escreveste 139 palavras, e, como somado a essas 139 estão as já guardadas para virem a lume. O começo, claro está, iniciado.

Uma jovem recém-casada dizia: “ah, não vou mais ao consultório daquele médico; sugeriu-me uma taça de vinho para relaxar-me em momentos muito especiais”. Essas palavras já me fizeram encucar… Ih! É isso que pode acontecer, oh dó… Vinho seco, mulher seca. Todas as ocasiões merecem-no: todas quentes e frias noites, especialmente as primeiras noites.

Abordei o vinho.

Das ruínas de outro castro, amanhece. Hora do pequeno almoço. Hora do companheiro do vinho e do café: o queijo. Vinho com queijo; café com queijo. A anfitriã leva a moça até a cozinha. Com seu costumeiro jeito de desdém, anuncia: “Não conheces este queijo. Nunca deves ter comido um camembert.” A moça, por estar em território não-favorável, engoliu as palavras que chegaram à boca, pensou, proferiu: “Conheço muito bem, apenas nunca tive o prazer de degustar o camembert recheado com nozes”. Uma semana passara na rua de Santa Marta, em Lisboa, desde a sua primeira aterragem no velho continente. Assim quisera estar. Primeira vez na Europa. “Estranha-se, depois entranha-se”. Janeiro de 1996. “Ficas nesta cidade velha?!” Ah, Lisboa, gosto de ti… Para ti voltava todas as manhãs de comboio. Mar? Centros comerciais? Há por todo lugar… Naquela altura já conhecera a Big Apple e outros lugares da New England…

Do alto da montanha, o castro em ruínas: “Sonho, ou pesadelo?”, uma adolescente combina com a amiga: “tu me arranjas João e eu, José para ti”. Pacto feito. Relacionamento iniciado ou enganos impensados. Estariam certas do que desejavam? Adolescência: “adultas” de primeira viagem. O pacto cumpriu-se. Não muitos anos após, João já estava só… José continuava no seu papel… Lembro-me de uma tirinha do Gatão de meia-idade: “Você e a Beth eram casados no papel?” O outro responde: “Eu no papel do insatisfeito; ela, no da infeliz”. Os dias, os anos corriam…

Por muitas vezes, da esposa de José tentara aproximação; lá pela quinta tentativa, resolvi deixar o rio correr: “Let the river run”… Lembro-me que emprestei-lhe por último (porém sem qualquer intenção de amizades fazer, há muito já deixara isso de lado) coisas para uma viagem ao reino de Elizabeth… peças mais quentes, era tempo do outono no hemisfério norte. Lá foram roupas e mala.

Deu-me fome, repentina fome: que tal um ‘eclair’?

Oh, fria noite! Hora de aquecer um ‘eclair’ salgado ‘en un eclair’ (uma expressão idiomática, a significar muito rapidamente – deixo já o sentido aqui, há de facilitar o leitor), sinto fome. Volto quando puder. Intervalo.

Está a sair um script para a próxima ‘soap story’?

Passei pela copa, uma namoradeira avistei… lá está aquela peça, da qual muita conversa participou a ouvir: conversas entre o amável sogro e a sogra anciã; entre o filho perdido e a bisavó doce, lúcida, amável. Por último, segredos inaudíveis…

Não aqueci o ‘èclair’… ver aquele móvel, fez-me lembrar de um momento de inconfidências feito… preparei um spaghetti aos quatro queijos… mais nutritivo, mais saboroso, mais quente. A garrafa de vinho ficara fechada; mas nunca falta. Ah! O vinho !

Descera do castro: casa do ‘èclair’ encerrada; era sábado como hoje. Fomos comer bem próximo. Ouvi tudo que jamais poderia imaginar que fosse possível ouvir; ela contara tudo: passado e presente da cunhada para a irmã (aquela do camembert com nozes!). Contaste tudo, não é mesmo?, tudo que envolvia, envolvera… passado e presente da vida da adorável professora. Decepcionante. Decepcionante? Penso que não. Quem sai aos seus não degenera. A matriarca andou a falar dos filhos de uma senhora: “coitada de Raquel não teve sorte com os filhos”. A vida mostra, mostra, e as pessoas de uma cegueira funcional são incapazes de ver o buraco; caem, necessitam de ajuda para levantar, caem e vão continuar a cair… enquanto não perceberem a crueldade do julgamento. “Não engorde um grama; assim está ótimo”. Ou “Engordaste!”. Não suportei: “acabei de encontrar com alguém, um homem, que justamente disse o contrário”.

Logo tu, tão discreta, foste dizer confidências, traíste. Logo tu, conhecida por aquela pessoa que “ouviu, esqueceu”.

Seria normal, em relação à narradora: “socorro quero distância dela, nada de comprometimentos”, principalmente com a mais velha dos cinco… a outra professora. Ah, é exatamente essa a professora que ouviu tanta coisa e nada disse. Agora, todavia, nada a esconder.

E os chiliques aos domingos com medo de cachorro; situação patética. O que é o faro dos bichos, sabem a quem implicar… Eles reconhecem quem não gosta deles; aí que implicam mais e mais.

Os castros além de ruínas, sufocam. José fez uma viagem para respirar… estava a ponto de não aguentar mais… procurava uma nova atividade profissional… pressionado…

Depois de alguns meses, os jogos olímpicos: o sonho, jogos olímpicos do Rio de Janeiro. Arrumou um lugarzinho próximo da arena do vôlei de praia: casa e comida. E até roupa lavada… “Não! Minha bermuda; já está molhada? Os ingressos? Preciso mostrar que são de cortesia ou de idosos, preciso provar que não foram comprados.” Recebe uma ligação: entre palavras entrecortadas, ou escamoteadas, ficou entendido – “estou na casa do meu cunhado; a conhecer bons restaurantes”; o outro fez a pergunta esperada: “sim, dela”.  Secamos os ingressos no micro-ondas; a carteira despedaçou-se… já estava na hora, anos de uso… outra foi imediatamente providenciada pelo anfitrião.

Há caixas e caixas na sala de refeições para tomarem rumo. Livrarem-me de ruínas castrenses.

Há um camembert no frigorífico.

© Eula Carvalho Pinheiro

[1] Título de um livro de poemas do Nobel de 2012, Thomas Tranströmer.

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